Março
se aproximava, minha filha mais velha iria completar 5 anos e, como toda
criança, ansiava pela sua festa de 5 aninhos.
Eu
sou produtor de eventos e nas horas vagas completo a renda como Uber. No
entanto, estou sem produzir há quase um ano e, é como motorista de aplicativo
que tenho sustentado a minha família.
As
coisas apertaram, sobretudo, quando nasceu a segunda filha que está prestes a
completar um ano.
Casa,
esposa, duas filhas, carro e muitos, muitos boletos. Não tá nada fácil.
Conversar isso com minha esposa ou um amigo é menos difícil mas, como explicar
para uma criança que sonha e fantasia com esse momento de “já ser grande”?
Eu
não poderia chegar falando que a inflação fechou 2020 com alta de 4,52%, a
maior desde 2016 que foi de 6,29%. Já imagino as perguntas:
-
Papai, o que é inflação?
-
E percentual?
-
2016 foi o ano que eu nasci, né?
-
Isso tem a ver com meu aniversário?
Então pensei, se Marina é tão imaginativa, vou aproveitar isso a nosso favor. Passei numa loja de doces e comprei um pacote daquelas moedinhas de chocolate embaladas imitando a moeda de R$ 1,00 (um real); peguei um quadro emprestado na casa de uma amiga; me arrumei como os professores da escolinha dela; a mamãe ajudou, explicando que o corona vírus voltou mais forte – o que não era mentira e que o professor ia vir dar aula em casa – ela muito esperta perguntou:
-
Mãe e tia Aninha, não vem?
-
Tia Aninha vai pra casa da sua amiga Carol hoje.
-
Mas, mãe, não tem professor na minha escola.
-
Contrataram novos professores para que possa ir um pra cada casa.
Eis que ela surge na garagem de casa e a “sala de aula” estava armada.
Ela
sorrindo gritou: o papai é o
professor!!!
Tentei
me manter firme, sério, para que ela tivesse a atenção necessária. Comecei falando
sobre a pandemia e o porquê de estarmos tendo que ficar em casa para se proteger,
mais uma vez.
Expliquei
que a primeira lição era desenhar ou colar figuras em cartolinas diferentes,
sendo:
- a casa e o que nela tem;
- os alimentos que ela costumava comer;
- o carro e tudo que nele tem;
- ela e a irmã e as coisas que elas usam;
- a escolinha, com material, mochila e lancheira
- os locais que costumávamos passear
A mamãe aproveitava o sono da tarde de Maria para me ajudar nessa missão. Já havia separado as embalagens de lanchinhos, grãos de arroz, feijão, macarrão; imprimiu fotos de itens como TV, Chuveiro saindo água, botijão de gás, ventilador, micro-ondas...
No
quadro já tinha a lição que faríamos depois dos desenhos, assim como a imagem
abaixo:
Quando ela sinalizou que terminara os desenhos/colagens, fomos para prática. Numa mesa havia 150 moedinhas. Expliquei que antes do corona vírus chegar o papai fazia eventos no final de semana e na semana é que intercalava as obrigações da família com viagens de uber. E, então pedi pra ela distribuir moedinhas nos desenhos de acordo com o número do quadro. Ela conhecia de 1 a 10 e mãe ajudou com os outros números, como 80 e 150, por exemplo.
Ao
terminar ela disse: - papai, ainda tem 20 moedinhas. Respondi que isso ia pro
banco, porque todo dinheiro que se ganha é importante guardar um pouco para uma
emergência.
-
o que é emergência, papai?
-
se você ou sua irmã ficar doente, se papai não puder trabalhar, se a mamãe
precisar de um remédio, se bater no carro...
-
a gente pode passear mais com essas moedas?
-
não, filha, o que podemos gastar com passeios são só 30 moedinhas. Aprenda desde
nova que sempre é preciso ter uma reserva guardada. Mais pra frente você vai
entender melhor.
-
Acabamos o dever, papai?
-
Ainda não, vamos para a segunda parte da tarefa. Você lembra quando o corona
vírus chegou? Todo mundo teve que ficar “preso” em casa, não podia sair pra não
ficar doente, você assistia as aulas da escolinha pelo celular e o papai não
saía mais pra fazer festa?
-
Lembro sim, o corona vírus era tão perigoso que eu fiquei um tempão sem ver a
vovó, sentia saudade das minhas coleguinhas da escola. E a mamãe sempre brigava
por tudo. Mas, pelo menos, todo final de semana você tava em casa e a gente ia
na praia.
-
Então, Marina, o corona vírus não só deixa as pessoas doentes, ele mata, tira
empregos, deixa pessoas sem ter o que comer, sem luz pra ver TV, água pra tomar
banho e principalmente sem poder ir e vir.
-
Mas, a gente tem água, eu vejo TV e todo dia mamãe me dá de comer.
-
Graças a Deus, filha, o básico e principal não tem faltado. Mas, tem deixado a
mamãe estressada, o papai bastante cansado e as moedinhas que recebo não são as
mesmas. Fora que, pela falta de empregos, as pessoas não podem comprar e com menos
pessoas comprando, tudo tem aumento de preço. Sabe esse biscoitinho que você
adora? Antes do corona vírus custa 1 moedinha, agora custa 3 moedinhas; o papai
colocava 5 moedinhas de combustível pro carro andar o dia todinho, agora
precisa colocar 7 moedinhas.
-
Quantas moedinhas você tem agora?
-
Tenho 80 moedinhas e quero que você distribua em cada desenho, de acordo com o
cenário 2.
-
Papai não tem moedinhas para eu e Maria, a gente não vai ter mais nada? Calma,
Marina. Maria ainda usa fraldas e isso não podemos economizar. Mas, você não tá
precisando de nada no momento, até porquê temos que ficar em casa.
-
Também não sobrou moedinhas para passear, a gente não vai mais pra praia? Pro
shopping?
-
Por enquanto não, filha, lembra que não pode sair de casa pra não ser pega pelo
corona vírus? Na praia podemos ir, desde que seja na semana e apenas para um
banho rápido.
-
Mas, o meu aniversário vai ter, né?
-
Então, Má, tudo isso foi pra te explicar que esse ano não poderemos comemorar
seu aniversário. As coisas estão muito caras você mesma pôde ver nos exercícios,
sem contar que não podemos receber seus primos e amigos, todos estão trancados
em casa pra não ficar doente. Podemos fazer um bolinho aqui só nós 4, você
escolhe um presente e, assim que o corona vírus for embora, a gente comemora
com todo mundo que você gosta.
-
Poxa, papai, eu queria tanto uma festa. ;(
-
Eu sei, meu amor, a gente também queria te dar a melhor festa, mas você já é
grande, não é mesmo? Já consegue entender que as coisas estão mais difíceis.
-
É verdade, as vezes não tem meu biscoito de lanchar e a mamãe inventa alguma
coisa; a fralda de Maria acaba e ela liga pra você trazer; escuto vocês
brigando mais; e sempre adormeço sem você ter chegado em casa.
-
Desculpa, filha. Papai tá batalhando pra aumentar o número de moedinhas e,
assim, não deixar faltar nada pra vocês. E de que adianta uma festa se não ia poder
vir ninguém?
-
Não ia ter graça, não ia poder brincar. Tudo bem, papai. Você pode então ficar
em casa hoje e sem brigar com a mamãe?
Nos
abraçamos, não contive as lágrimas, ficamos um tempo assim e, só nos largamos
porque Maria tava abrindo um berreiro. Brinquei com as duas, a mãe desfez o
cenário da “sala de aula”, mas fez questão de fixar os desenhos/colagens na
parede do quarto dela para que não esquecesse nunca dessa lição.
Acredito
que foi a melhor aula que dei/recebi na vida. Possivelmente ela não lembre
disso tudo daqui há um tempo, mas algo vai seguir com ela pra vida toda.
Eu
sou Rodrigo, pai de duas e tô matando um
leão por dia pra poder sobreviver nesse caos.
Gabi
D.
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Texto produzido para o 2º desafio/MAR do Clube da Escrita,
ministrado pela @anaholandaoficial.
O
segundo encontro de Março nos desafiou a escrever a partir de uma perspectiva
diferente, ou seja, explicando para uma criança sobre inflação.
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