Finado Manedim


Nasceu Manoel Damásio Neto, mas ficou eternizado como Manedim. Foi meu avó e pai. Além dos outros dez filhos que criou com dona Nair. Minha mainha. Guerreira.

Manedim era boêmio, cachaceiro, fumante e raparigueiro. Ainda em Caicó jogou em time de futebol, mas seu ofício era a alfaiataria. Era referência. Fez paletó até pra o presidente Tancredo Neves.

Todo mundo tem algum causo pra contar dessa figura. Cresci ouvindo suas histórias. Amante do flamengo, de bons sambas e de chapéus.

Me contaram que já morando em Natal ele foi certa vez ao médico que foi taxativo: ele precisava parar de fumar, beber e tomar café, isso ia acabar com ele. Com riso irônico, ele ponderou: - olhe doutor, o café eu largo, o cigarro eu vou vencer, mas morrer eu vou de todo jeito, num é mermo, então vai ser bebendo. Largo minha branquinha não.

E não é que esse cabra morreu de cirrose!

Sempre muito elegante, ele lustrava os sapatos todo fim de tarde, separava o paletó – a maioria de linho e colocava numa cadeira. A mesma que ficava seu chapéu panamá. No bolso sempre havia um lencinho. Um verdadeiro galã da boêmia. Quando estava em casa era só de samba canção mesmo.

Na nossa casinha amarela da rua Condor, o quarto dele era o 1º, o meu era o último, ficava colado na cozinha e a porta que dava pro quintal parecia que era bem no meu pé do ouvido. O banheiro ficava no quintal e o moído dele começava sempre às 3h30 da manhã.

Rangia a porta... era ele indo pro banho, depois voltava pra se aprontar. Fritava um ovo com bolacha e saía quando ainda estava escuro. Destino: Bar de Lalá, no centro da cidade, atrás do cine nordeste, vizinho a relâmpago. Todo dia. Só escapava o domingo porque Lalá fechava. Ele bebia uma garrafa de cachaça – pelo menos. Todo dia. Voltava pra casa perto da hora do almoço, trocando as pernas, comia, me abusava – porque bebo é chato – e ia pra sua fiel escudeira, a rede. Dormia até umas 15h e começava o ritual todo de novo.

As coisas lá em casa estavam beeeemmm pesadas para uma aborrecente e um idoso alcoólatra.  Ele, quando não tava bêbado, dormia. Ainda bem. Eu muitas vezes era tirada de casa pra não ver as presepadas que meu tio aprontava. Certa vez, Manedim temendo não ter o que comer no dia seguinte escondeu um ovo dentro do sapato. Bebo, claro. Quando foi calçar o sapato quebrou o ovo. Estrago feito e acordou geral com a falação dele às 4 da madruga.

Primeiro ele perdeu um amigo que batia ponto com ele lá em Lalá. Sumiu e foi encontrado morto num pé de morro, descampado. Isso já deixou Manedim cabreiro. Depois ele começou a ficar ariado por causa da labirintite, se perdendo nas ruas, a saúde já gritava por cuidados, com as taxas todas alteradas e tínhamos que “prender” ele em casa. Trocou a branquinha por Campari, acreditando que esse ofendia menos, porque era bebida de mulher, fraquinha – dizia ele. Não tinha muito o que fazer, ele não ouvia ninguém, já não podia mais ir para o único lazer que o mantinha vivo, o jeito era tornar os dias dele menos entediantes.

Mesmo não tendo mais o tal ritual, ele continuava levantando às 3 e pouquinho da manhã, indo de um lado para o outro da casa. Teve que vir uma cuidadora pra fazer comida e cuidar das coisinhas dele e o veio cabido, vivia se engraçando para Marinete.

Até que um dia ele não acordou às 3h30. Nem às 7h, nem às 9h. Marinete disse: - Gabi, mulher, seu avó ainda não se levantou, ele tá num soninho tão profundo que tô com pena de acordar. O café dele já esfriou.

- acorde não, ele passa a noite andando, tá bom de descansar mesmo.

- ele tá num sono tão profundo que chega ressona, fez até xixi na rede.

- quando eu fui olhar, ele tava todo mijado e pior, espumando algo verde pela boca.

Corri pra um orelhão e liguei pro trabalho de Nega. Que ligou pra tio Osni, que acionou tio Oberdan por ser médico, daí o marido de Nega veio pegar vovô pra levar pro Papi. Mesmo forte, o marido de Nega não consegui sozinho, preciso de ajuda do vizinho. O corpo morto fica mais pesado.

Foi a última vez que vi Manedim “vivo”.

Ele ainda ficou em coma por uns dias, até que game over.

 

 Gabi D. 

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Desafio 003Ago do Clube da Escrita, ministrado pela @anaholandaoficial.

O terceiro desafio de agosto nos propõe escrever a partir de um personagem real ou fictício, com todos os detalhes de vestimenta, ambiente, sotaque, peculiaridades.

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